domingo, 19 de novembro de 2017

Palavras, palavras, palavras



Independente dos momentos variados pelos quais tenha passado,
a imagem que nos chegou e que fixamos da Gisele-mãe em nossa
memória muito possivelmente foi essa.


A primeira coisa que li nesse domingo foi uma matéria da TIME.COM, abordando a situação de tantas mães que planejaram o parto natural e a amamentação, mas enfrentaram obstáculos e acabaram por ter suas metas frustradas.

O texto trata do quanto são impiedosas a pressão e a cobrança externas e também internas pelo alcance de resultados biologicamente ideais em meio à imensa complexidade da realidade que cerca a mulher em seu momento de maior vulnerabilidade.

Mais adiante a matéria aponta que, em grande medida, isso vem acontecendo em decorrência tanto da influência das redes sociais -onde muitas vezes se canta "em verso e prosa" o poder da natureza, refletido em exemplos de figuras públicas que alcançaram o ápice da realização em seus partos e amamentação, quanto da influência exercida por um ativismo insistente (talvez até "ortodoxo", eu diria) em defesa do nascimento e da alimentação naturais para bebês.

E mais adiante ainda, a Iniciativa Hospital Amigo da Criança, certificação de maternidades idealizada pela OMS e pelo Unicef para proteger, apoiar e promover o aleitamento materno, é apresentada como uma medida originalmente tomada para garantir uma alimentação adequada a crianças, "especialmente em regiões que não possuem água potável". Vale dizer que o relatório The Baby Killer, estopim da mudança no paradigma científico, realmente decorre de uma pesquisa do autor em viagem aos países do então chamado Terceiro Mundo, que recebiam fórmulas lácteas e mamadeiras como doação, locais mais pobres onde água potável era artigo raro. Mas essa frase pode -mesmo sem ter a intenção- levar o leitor a considerar, como muitas pessoas consideram, que em situação menos precária esse problema não aconteça. A diretriz da OMS e Unicef em estabelecer os passos que compõem a Iniciativa  se baseou na denúncia do relatório, mas se dirige à sociedade como um todo. A IHAC também é criticada no texto por ser demasiadamente impositiva em seus dez passos, que incluem a proibição de entrada de mamadeiras, bicos e chupetas e o alojamento conjunto, levantando a eventualidade de que o bebê dormir junto à mãe pode sufocar acidentalmente a criança.

A autora do artigo relata ter perguntado ao representante da IHAC nos EUA sobre "quais seriam as possíveis consequências de não amamentar: lesão? Doença? Morte?".

Bom, precisei então fazer esse post. Tenho plena consciência de que textos podem ter várias leituras. Mas escrevo principalmente porque percebo muito intensamente o quanto os discursos podem nos parecer coerentes, mas simplificar, ocultar ou omitir informações cruciais. Frases que passam "batido", mas mesmo sem intenção do autor, comunicam diferentemente do que pretenderiam.

1) Tenho acompanhado bem de perto situações de nascimento e tentativas de amamentação que deparam com problemas que provocam o uso de recursos que contrariam o desejo e os planos dessas jovens mães (partos cesáreos e complemento- fórmula). Realmente difícil ... Dentre cinco casos, apenas um foi de sucesso integral, sem qualquer tipo de obstáculo. A chegada de um bebê é sempre revolucionária, capaz de transgredir tudo aquilo que vem sendo excessivamente comentado, planejado, idealizado atualmente nesse ambiente de intensa interligação comunicativa.

2) As redes sociais hoje são um veículo que permite mostrar momentos que antes eram registrados em fotografias, que só de vez em quando eram reveladas e ampliadas para compor álbuns. Quando ficavam prontas, aquele registro já fazia parte do passado. Agora podemos abrir as janelas de nossa vida, dos acontecimentos e dos nossos pensamentos quantas vezes quisermos por dia. Acho que isso faz com que o presente tenha ganho, potencialmente, o poder de ficar lotado de acontecimentos que, para poderem ser exibidos nas redes, é melhor que sejam bons acontecimentos. Muita pressão... E exemplos demais, referências demais, ao alcance das nossas mãos, mas verdadeiramente distantes da gente.

3) Ativismo insistente? O ativismo é uma resposta da sociedade civil organizada ao poderio das corporações, é um instrumento de valorização das capacidades humanas que as indústrias insistem em descredenciar com seu discurso sedutor: fantasiando vendedoras de enfermeiras e entregando latas de leite em pó e mamadeiras a mães que estavam amamentando seus bebês na África, nos anos 70; misturando melamina (plástico) pra simular proteína em leites em pó, o que provocou pedra nos rins em mais de 6 mil crianças na China em 2009; violando regras de controle com estratégias de marketing que fazem com que países como a Inglaterra tenham menos de 2% de bebês amamentados exclusivamente até os 6 meses; fazendo crer às pessoas que doar leite em pó para populações vítimas de desastres naturais salve vidas, quando a falta de água potável nesses casos é um convite à doença e morte de crianças que, por essa oferta, serão precocemente desmamadas, como no tsunami na Indonésia, em 2004, ou em Teresópolis e Friburgo em 2012.



4) Água é um problema mundial. Dizer que a Iniciativa Hospital Amigo da Criança foi concebida motivada especialmente para regiões que não possuem água potável é torcer a realidade. As pesquisas científicas que denunciaram os perigos do leite em pó, como "Leite e homicídios", da Dra. Cicely Williams, foram realizadas em várias partes do mundo. E se alguém confia no fato de que dispor de água potável é garantia para o uso de mamadeiras, pense bem se já não deixou de lavar esse produto depois da mamada, deixando-o uma noite inteira na pia da cozinha. As bactérias do leite se proliferam e se escondem nas roscas e tubos e cantinhos daquele objeto, que quase nunca é lavado conforme recomendam seus fabricantes. Veja o vídeo.

5) E o destaque para o fato de que a criança corre o risco de sufocamento por dormir junto à sua mãe nas maternidades? Eu gostaria de refutar essa afirmação, mas me faltam informações, pois me dediquei em pesquisa a deparar com coisas que se omitem, como os casos graves de engasgos que ocorrem com as mamadeiras, meu objeto de estudo. Amigos pediatras neo-natais, me auxiliem aqui, please!

6) Por fim, não amamentar causaria algum dano tão grave quanto "lesão? Doença? Morte?" Sim, pode causar tudo isso, mas os efeitos são silenciosos e a longo prazo. Defeitos no desenvolvimento oro-facial, mordida aberta, respiração bucal, rinite, otite, pneumonia, diarreia, morbidade e morte.

O fato é que muitos de nós nascemos de partos cesáreos, fomos criados com leite artificial por mamadeira e não morremos. Ok, ficamos adoecidos quando poderíamos ter nos livrado disso, usamos aparelhos ortodônticos, operamos o adenoide etc., mas estamos aqui, firmes.

Sim, firmes e entrosados em uma cultura que cada vez nos cerca mais e mais de ofertas de consumo e de medicalização, que fez com que o Brasil chegasse a ser campeão mundial de cesarianas.

Concordo com o fato de que, sem dúvida, o momento atual é crítico para as jovens mães que têm seus filhotes em cenário de tantas intensidades, superlativos e imperativos.

Só que a cada dia identifico coisas que operam para nos tornar cada vez mais desacreditados de nossas próprias capacidades.


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