domingo, 22 de outubro de 2017

Sem título

Sem título - Keith Haring - 1982

Hoje é tudo patrocinado, né?

Antes não era ...

Eu me lembro que na minha juventude (anos 70, 80), a praia de sábado era o momento de saber qual seria o programa da noite. As pessoas davam festas. Normalmente eram de um amigo do amigo, e aquele grupo grande chegava nas casas, grupo de amigos de um convidado. A gente se divertia, dançando a valer.

Aí as festas foram escasseando. Nos anos 90 eu e meu marido fizemos resistência a essa tendência, dando cerca de três festas por ano num apartamento pequeno. Arrastávamos os móveis e ele gravava altas fitas-cassete com uma programação musical que não deixava ninguém parado. As crianças iam pra casa da avó ou ficavam lá mesmo. Cada um levava algo de comer ou de beber e, se faltasse, a gente passava o chapéu e um voluntário saía pra comprar.

Mas continuaram escasseando as festas nas casas das pessoas, enquanto surgiam festas, enormes, financiadas por empresas. De bebidas. Arraiá da Boa e coisas do gênero.

Hoje só tenho notícia de festas de casamento. Fora isso, sei de festas infantis em casas de festas e em playgrounds, e de uma ou outra comemoração de aniversário em mesas enfileiradas de bares e restaurantes.

Por que estou falando isso? Porque ando super-pensando no quanto uma correnteza forte faz com que a gente tenda a depender cada vez mais das empresas e de sua grana pra realizar as coisas.

Ontem li, com alívio, a notícia de que a Orquestra Sinfônica Brasileira voltará à atividade depois de um tempo muito, muito escuro, em que seus integrantes ficaram sem trabalho, sem salário. Porque a Orquestra conseguiu patrocínio!

Aí me lembrei dos ENAMs (Encontro Nacional do Aleitamento Materno), que acontecem sem verbas de patrocínio de empresas (as que oferecem, em sua maioria, fabricam produtos que provocam o desmame precoce, mas têm um discurso fofinho de que "fazem bem" e coisas do gênero). As verbas vêm do governo federal, estadual, municipal; os eventos ocupam universidades.

Aí eu me lembro de que os congressos de pediatria prosseguem sendo patrocinados pela Nestlé.

Aí fico sabendo de um evento ocorrido ontem, em São Paulo, chamado Descomplica, mãe!, patrocinado pela Dove, pela Danone e mais um sem fim de outras empresas de produtos infantis.
Resolvo navegar no site.

Em patrocinadores, leio :
Baixe nosso book comercial e saiba por que estar presente neste evento fará da sua marca uma queridinha das mamães. 

Clico em Saiba mais:
Seja um patrocinador do evento! Uma oportunidade única de falar com o principal formador de opinião e shopper [comprador] da maioria das famílias brasileiras. 

Rolo a tela e encontro:
Estaremos arrecadando alimentos não perecíveis para auxiliar o CREN [Centro de Recuperação e Educação Nutricional - pelo que entendi, dedicado a acolher e orientar famílias pobres]. Os itens que eles mais precisam são: leite em pó, atum, sardinha e aveia.

É assim que as coisas vêm sendo.

Descomplica, mãe! Existem produtos para solucionar todas as coisas! Pra que se desgastar, se você pode comprá-los?

Podem ter sido legais as palestras, os papos desse evento. Mas quando a gente espia todo o marketing por trás, dá nervoso.

Tem um livro de Zygmund Bauman chamado Comunidade. Nele o autor trás à pauta o fato de que a comunidade se transformou: deixou de ser um grupo de pessoas, pra se transformar em pessoas que se reúnem em torno de marcas (seja um NET). Hoje, mais do que desejar pertencer a um grupo, a correnteza conduz a desejar pertencimento às marcas.

Aí continuo me lembrando de coisas. Dos grupos de mães que existem há um tempão e que nunca chegaram nem perto dessa coisa de patrocínio, mas também da série de filminhos da Nestlé que aparece no GNT, em preto e branco, sob o título Humanidade em nós, procurando se mostrar tão sensível à humanidade das pessoas, porém prosseguindo em sua escalada pelo lucro. Leia essa matéria pra constatar.

Eu sei, a escolha é de cada um. A escolha.