quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Um trecho do livro "Amamentação e o desdesign da mamadeira"


O retorno ao trabalho é sem dúvida um dos motivos que conduzem as mães ao desmame de seus filhos mais precocemente do que elas desejariam. Os esforços das mulheres em carregar seus filhos para o trabalho ou ordenhar leite suficiente para que outra pessoa o dê à criança, ou mesmo em retornar às suas residências durante o horário do almoço para amamentar exigem um nível de organização e disciplina muitas vezes maior que suas possibilidades. Além disso, a amamentação exclusiva recomendada pela OMS contrasta com as recomendações nutricionais de muitos pediatras que, desde o nascimento do bebê, aconselham as mães a complementar a amamentação com sucos, vitaminas e fórmulas lácteas[1].

Recorrendo a fontes informais de pesquisa, em matéria publicada na revista Pais & Filhos, a jornalista Deborah Trevisan informa que no Brasil, em 1996, o tempo médio de amamentação de bebês ao seio era de apenas um mês. Em 2006 esse tempo chegou a 2,2 meses (apesar de 96,4% das mães terem amamentado pelo menos uma vez), sinal de que “quase todo mundo tenta, mas a maioria fica pelo caminho: o bebê não pega o seio direito, o bico racha, a dor é insuportável”. Uma das entrevistadas teve problemas logo nas duas primeiras semanas. O pediatra foi consultado e recomendou a complementação com mamadeira: “Quando vi que o Theo mamou toda a mamadeira e dormiu feliz, resolvi que aquele era o caminho. Amamentei-o dois meses e, depois, ele largou o peito”. A mesma entrevistada amamentou a segunda filha, e, embora sentisse muita dor, recusou-se a recorrer à mamadeira e procurou outro profissional de saúde; este lhe disse: “Isadora, você não tem nada, seu seio está impecável, a pega dela é ótima, seu leite é forte. Volta pra casa, relaxa e amamenta sua cria”. A partir desse conselho, tudo se resolveu.

O fato é que não se nasce sabendo como agir quando a amamentação não acontece de maneira perfeita e exemplar, e a citada matéria se soma a diversos recentes artigos em jornais e revistas jornalísticas semanais, cujo intuito é atualizar os pais acerca de novas condutas[2].

Para desvendar as contradições vividas pelas mães, a pesquisadora Lylian Dalete Soares de Araújo investigou dentre as mulheres que amamentam quais são suas representações sociais sobre o aleitamento e sobre o próprio corpo. Citando Badinter, a autora demarca que a regulamentação de contratos de amas-de-leite constava do código de Hamurabi (1.800 a.C.), e que a Bíblia fazia também referência a elas; e que para os judeus, ao contrário, a amamentação era “um sagrado dever da mulher”. Descreve que o costume de contratar amas mercenárias (a fim de manter “a beleza e o frescor” femininos) era corrente na Europa do século XVIII, constituindo-se a criança — e, principalmente, o lactente — um verdadeiro “fardo”, a quem a recusa do seio representava o primeiro sinal de rejeição (Araújo, 1997).

Tal mentalidade foi aos poucos transformada pelo paradigma higienista em prol da sobrevivência das crianças, e as mudanças sociais provocadas pela Revolução Industrial introduziram o alimento artificial e as mamadeiras, fazendo com que a alimentação infantil passasse a ser regida pelas leis de mercado (Almeida, 1999, p. 37-38). Para o senso comum e na experiência familiar, o que ocorre é uma diminuição do número de mães que amamentam e um aumento do número de crianças que mamam na mamadeira. O saber popular foi substituído por uma “visão biologicista” que deslegitimou o aprendizado das mulheres sobre o assunto, fenômeno que se refletiu na atuação dos profissionais de saúde e no funcionamento dos hospitais: 

Desde o começo da humanidade, as crianças, logo após o nascimento eram postas ao lado de sua mãe. No começo deste século foi criado o berçário, para proteger as crianças contra as infecções hospitalares. Após a Segunda Guerra Mundial, pensava-se que a mamadeira era a melhor forma de alimentação e esta era dada ao recém-nascido antes mesmo que ele saísse do hospital, sem que se soubesse por exemplo, quase nada de imunologia nessa época. E através do berçário, conseguiu-se interferir em uma coisa fundamental: o relacionamento precoce entre mãe e filho. […] Logo após o bebê nascer, alguém o enxuga, retirando todo o líquido amniótico e o verniz caseoso, cuja função é a de proteger e hidratar a pele sensível do recém-nascido. Em alguns hospitais, dá-se um banho de chuveiro, aspira-se o bebê com uma sonda, vira-se o bebê para todos os lados e, se ele não chora vigorosamente logo após o nascimento, ainda recebe umas palmadas, pesa-se, mede-se. (Citando Martins) Em alguns casos, num arroubo de preocupação afetiva, tem-se o cuidado de mostrar a criança rapidamente à mãe, que tenta desesperadamente, durante breves momentos, olhar seu bebê... […] É então levado ao berçário, onde são feitos os registros de suas condições físicas e recebe uma pulseira com o número que o identifica. A única coisa que não fazem é levar a criança para ser amamentada. (Araújo, 1997, p. 41-43)

O auge da força da sucção, que se dá na primeira meia hora após o nascimento, é desperdiçado quando o bebê é levado ao berçário, onde, muitas vezes, ele recebe fórmulas lácteas. Embora hoje a orientação se volte para a humanização do parto e para políticas públicas de incentivo ao parto normal[3], infelizmente persiste em muitos hospitais o afastamento do bebê.

A conduta de muitos obstetras e pediatras reforça a persistência dessa mentalidade. As “saídas fáceis e práticas” do parto cesáreo e da administração de leites artificiais entram no lugar do encorajamento e do apoio ao enfrentamento de realidades contraditórias e em permanente transformação (p. 45-46).

 A autora, citando Paulete Goldemberg, aponta a necessidade de considerar a influência das transformações históricas sobre a sociedade para se diagnosticar as causas reais do desmame. A adesão ao leite em pó, ao nível das representações, concede à mulher “um sentimento de pertencimento social e de acesso aos benefícios gerados pela sociedade” (p. 54-55). Recorrendo a Edgard Morin e Moscovici, Lylian Dalete Soares de Araújo sublinha que a cultura de massa tem a capacidade de fabricar pseudo-necessidades que se transmitem de geração a geração de forma automática (p. 62-63). O poder simbólico agregado aos produtos que desenham um estilo de vida gera comportamentos que tendem a desmotivar a busca pelo conhecimento dos processos humanos, deflagrando correntezas difíceis de vencer. Padrões hegemônicos definem o que é um corpo saudável e bonito, impondo, segundo Jodelet, “o declínio do corpo considerado como organismo biológico” para a elevação do “corpo considerado como lócus de prazer” (Jodelet apud Araújo, 1997, p. 76). Daí o sentido de “doação” ter sido o sentimento mais frequentemente identificado pela autora nas entrevistas que realizou para definir a postura assumida por mulheres que optam por amamentar. Sentimentos como amor, vínculo, sagrado, sacrifício, espoliação e resignação — tanto oriundos da própria mulher como de seus maridos e familiares — também estão presentes nos depoimentos:

Eu acho que [o seio] vai (ficar flácido), né? Mas eu acho que não vou ligar. Vale a pena.

Antes eu gostava do meu corpo, me sentia bem, tinha um corpo bem bonito. Sempre fiz natação, pratiquei esportes. Agora me acho um lixo.

E, então ele (o marido) força bastante. Por mais que eu esteja com dor, ele faz eu amamentar. Mesmo gritando ele faz a gente ficar ali. Eu posso passar dor, o neném não pode passar fome.

Eu acho que quando eu estava amamentando, dava um prazer na gente, sentindo o neném em você, mas a mamadeira também eu acho que você sente o mesmo carinho, pode segurar o seu neném, a mamadeira, saber que ele está se alimentando, mas eu acho que amamentar dá um prazer muito maior em você, saber que seu filho está se sustentando em você. (Araújo, 1997, p. 116-162)

Araújo concorda com Martins quando ele diz ser necessário acreditar que “a luta pela amamentação é mais ampla e, no fundo, mais uma luta pela liberdade, contra um sistema desumano que cada vez mais quer substituir o natural e o instintivo por uma técnica” (p. 49). Amamentar é também um processo político, pois é um ato compartilhado e, assim, “regulável pela sociedade que imprime sua ideologia, é uma opção da mulher que é determinada pelas suas condições concretas de vida” (Araújo, 1997, p. 40).
Enfim, trata-se de uma complexa equação que pode ser auxiliada, no nível do senso comum, pelo aumento do conhecimento que se tem sobre as propriedades do leite humano e pela conscientização acerca dos impactos provocados pelo uso do leite em pó em mamadeiras.


[1] Em 1989, ao reassumir o trabalho após quatro meses de licença-maternidade, esta pesquisadora documentou os procedimentos a serem realizados com sua filha pelas avós durante sua ausência diária. Nesses textos, nota-se a prescrição (da mãe às avós) de frutas e vitamina na dieta, apesar do retorno à casa no horário do almoço.
[2] LOPES, A. D. Bebês, o novo manual de instruções. Revista Veja. São Paulo, Ed. Abril SA, 14 de outubro de 2009; e Trevisan, D. Leite derramado. Revista Pais & Filhos. São Paulo, Editora Globo SA, agosto de 2009.
[3] Campanha de incentivo ao parto normal do Ministério da Saúde, 2009.