domingo, 11 de novembro de 2012

Mamadeira e leites artificiais: só tem mocinho e vítima, né? Tá faltando um bandido



Reproduzo aqui mais um trecho da tese, que será publicada no primeiro semestre de 2013 (está agora em fase de revisão).
Considero a consulta que fiz aos professores de design um momento-chave da pesquisa. Aqui foi discutida a malha de interesses que propicia a força da cultura da mamadeira, apesar das recomendações dos órgãos de saúde contra o seu uso:




Percebe-se a existência de um contexto intrincado que viabiliza e referenda a inserção dos leites artificiais e das mamadeiras na cultura:
— A questão, muito bem abordada na apresentação, é que há uma malha de interesses, quer dizer, é uma indústria farmacêutica pesada acenando com perspectivas de ganho muito grandes para os próprios médicos; essa medicalização dos cuidados com a parturiente, a criança e tudo mais, e até mesmo acenando nas campanhas como algo bom para a criança: eu vou ser uma boa mãe na medida em que fizer isso. Quer dizer, não há bandido nessa história, só tem mocinho, né?
— Só tem mocinho e vítima, né? Gozado, tá faltando um bandido.
— Na verdade as crianças são aquinhoadas.
Esse trecho do debate foi seguido de comentário, feito pela anfitriã, que agregava àquilo que havia sido dito informações sobre o recurso promocional empregado pela Nestlé em recente comercial de TV (a mãe, como expert em leites, recomendando os leites da empresa); o fato de recentemente indústrias alimentícias brasileiras terem fechado acordo de não realizar propaganda dirigida ao público infantil; o fato de o relatório do IBFAN ter demonstrado retrocesso nos níveis de controle da conduta pró-amamentação na União Europeia (sinal de que as indústrias estão investindo em suas estratégias) e o consequente lançamento da boneca que amamenta.

O raciocínio, simples e coloquial, que levou a identificar “mocinhos”, “vítimas” e ausência de “bandidos” é muito expressivo. Pode mesmo ser aplicado à questão como um todo, ou seja, referente a toda a problemática da necessidade de reavaliar a produção industrial. Pois o discurso das empresas é de recomendação enfática dos produtos; eloquentes são os danos de alguns produtos sobre seus usuários, silenciados tantas vezes pelo poder de penetração da voz dos produtores. Não há “bandidos”.
Prosseguindo,
— Você também não acha, como disse, que isso resulta também da forma com que funciona essa parceria com a comunidade médica? Eu vejo duas coisas. A primeira que a Nestlé pautou seu discurso na questão da confiança. Então quem é a sua primeira fonte de consulta, se você dá ou não peito, dá ou não leite de mamadeira? O médico, o pediatra que eles chamam de neonatal, que está na sala de parto. Esse pediatra, que talvez seja o que acompanhe o bebê depois, ele vai (teria que) dizer: olha, é assim mesmo, tem que tentar e se ficar machucado tenta o outro peito, que não está abaixo do peso, é assim mesmo. Não, mas ele tá magrinho! Mas é normal. Ele vai (deveria ir) te convencendo e te dando essa confiança.
— (O leite e a mamadeira) são economicamente mais rentáveis para os médicos e para os hospitais.
— O que o médico receita é porque que a indústria indica, e o médico é uma classe que goza de muita fé das pessoas, porque ele lida com a cabeça da gente, com a nossa vida, então acreditamos nele e precisamos acreditar nele. A gente coloca a vida da gente na mão do médico. Ele tomou o lugar do padre, da religião.
— Eu (sou designer, mas) quando fiz medicina, a aula inaugural da gente era com um professor bem velhinho, que dava as dicas de como se entrar na casa de um paciente: um pigarro antes da soleira para demonstrar sua autoridade, esconder as mãos pra aparentar segurança, demonstrar que você tinha uma sapiência.
Não é difícil identificar o comprometimento inicial entre a indústria e a área médica a partir do início do raciocínio sobre o alto nível de implantação da cultura da mamadeira e dos leites artificiais em nossa sociedade. Como já visto, a invenção dos leites industriais necessitou de uma “ponta de lança”, uma veia de penetração que garantisse a aceitação do novo produto no mercado. Mesmo que a área médica tenha sido a fonte dos estudos científicos que deflagraram o perigo do produto, a mesma área foi responsável por promover a expressiva penetração da mamadeira nos hábitos da população, uma penetração referendada por profissionais encarregados de zelar pela saúde das pessoas. E isso em grande parte se deve ao fato de que as empresas detêm capital para investimento em pesquisa. Empresas privadas, institutos de pesquisa estatais e universidades constituem pólos de pesquisa, mas a capacidade financeira e os objetivos estratégicos das empresas fomentam ali muito substancialmente a geração de resultados. A realização de pesquisas tende a gerar credibilidade sobre produtos. Sem a pesquisa, o que existe é acomodação sem evolução, como tratado no trecho a seguir:
— Às vezes recebemos uma crítica de algumas áreas: (a de) que um investimento tecnológico (que envolve pesquisa) pra gerar um produto, às vezes associava um consumo. […] (Com) uma baixa grande de consumo, a indústria vai dizer: então não vou investir em pesquisa e vocês não vão saber qual é o melhor plástico. É uma argumentação que vai surgir. E a indústria vai ficar sempre isenta de qualquer coisa.
Em outras palavras, o professor referia-se à pratica de as empresas contratarem pesquisadores de várias áreas (inclusive em universidades) visando à geração de produtos para o consumo. Vista por muitos como “conivência” entre pesquisador e indústria, a ausência dessa parceria acarretaria, hipoteticamente, uma estagnação tecnológica da produção, o que não é aceitável para o modelo econômico nem desejável pela sociedade. Mas o problema reside em que algumas descobertas científicas, como no caso das mamadeiras e do leite em pó, ficaram encobertas, a fim de não desestruturar sistemas econômicos e de consumo já instalados.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Código de honra

Acabo de assistir na TV a cabo ao filme "Código de honra", filme norte-americano de 2011. Diante de muitos acidentes e casos de infecção por HIV, hepatites etc., envolvendo profissionais da saúde e seringas plásticas, um engenheiro inventou uma seringa não-reutilizável, que soluciona o problema.

Mas ela não foi de interesse dos órgãos que controlam a compra de suprimentos hospitalares no país porque, além de mais cara, sua adoção acabaria com um esquema milionário que envolve o que poderíamos chamar de "a indústria da doença", que inclui a prática de exportar para países pobres as seringas, que são lá reutilizadas.

Obra de ficção? Não.
Depois de muita luta, jogos de pressão e mortes, o filme relata que alguns hospitais aderiram à seringa, alguns, e que permanece aquela prática de reutilização em países da África (eles denunciam no filme que esta foi a principal causa da disseminação da AIDS naquele continente).

As tensas reuniões que aparecem no filme me fizeram lembrar das algumas oportunidades em que eu e a equipe com quem trabalho no projeto do copinho tivemos de conversar com advogados, empresas ligadas a patentes, coisas assim.

Os problemas da mamadeira, quando apresentados, caem como uma bomba. Claro, mexem com uma indústria que é apenas a maior indústria de alimentos do mundo.

Numa dessas vezes, fomos alertados do seguinte: procurem se defender de possíveis interessados no projeto de vocês, pois a empresa pode querer financiar e patentear, justamente para nunca permitir que o produto vá para o mercado.

É, quando você entra numa de analisar em detalhe, muitas vezes percebe que as coisas mais cotidianas podem ser personagens de filmes como este.

Recomendo.