sábado, 13 de janeiro de 2018

Mamadeira: modos de ver






Tenho muito interesse por História, mas principalmente pela história das pessoas que viveram os momentos históricos.

De uns anos pra cá, quadrinistas como Ars Spilzman e Joe Sacco vêm se dedicando a fazer esses registros, Spilzman com a famosa HQ Maus, que trata da relação entre judeus e alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e também do 11 de Setembro (NY), e o segundo fazendo incursões muito impressionantes durante a Guerra da Bósnia e também na Palestina. Esse trabalho de relato da realidade histórica recebe o nome de Reportagem em Quadrinhos.

Hoje quero falar de um lançamento recente (2017) que quadriniza o Diário de Anne Frank. Super-recomendo a leitura para jovens e adultos, pois a consagrada obra nos fala sobre o que aconteceu, pelo olhar de uma menina de 14 anos. Delicado e perspicaz, o relato de seus dias no esconderijo, em Amsterdã, durante a Segunda Guerra, é capaz de manter vibrantes fatos que não podem ser esquecidos.

Atenta que sou sobre a questão das mamadeiras, deparei com a página abaixo, que desencadeou em mim algumas reflexões.


Amplio as imagens:



Anne refletia sobre o quão injusto era considerar a mulher como cidadão de "segunda classe" perante os homens, estes sim valorizados por sua liderança e coragem: "As mulheres, que sofrem e suportam a dor para garantir a continuação de toda a raça humana, seriam soldados muito mais corajosos do que todos aqueles heróis falastrões, que dizem lutar pela liberdade juntos", diz ela.

A imagem é forte. Como se a gestação, o parto, os cuidados com o filho durante a infância e a adolescência, estivessem fadados à geração de soldados para as frentes de batalha, onde imperava a perspectiva de uma morte precoce.

Logo abaixo, a manifestação de seu alívio, a mudança positiva que se processava na sociedade:


Na imagem, uma oficial graduada ensina a uma turma de soldados, incumbidos dos cuidados aos bebês, sobre as propriedades e o uso da mamadeira.

Compreendo que a publicação se dedica a dar visualidade às ideias de Anne Frank, reproduzidas com fidelidade pelos textos.Ou seja, a autora do Diário não cita as mamadeiras, mas os realizadores da HQ a utilizam para ilustrar um certo contentamento de Anne com mudanças que "abriram os olhos das mulheres", relativas à educação, o trabalho feminino e o progresso, concedendo-lhes espaço para pleitear "o direito de ser completamente independentes".

A gente precisa se transportar para aquela época pra entender como um objeto, um produto, conseguiu reunir atributos e representar valores tão ansiados pelas mulheres. Presas à função de alimentar os filhos ao seio, ou aos filhos dos outros, como amas-de-leite, às mulheres se abriram novas perspectivas e oportunidades sociais por intermédio do produto, que as libertava de amarras que até então pareciam eternas.

Mas, consultando minhas anotações e as confirmando na internet, chegamos a dados importantes que, desde aquela época, comprometiam seriamente a mamadeira e os leites artificiais:

- entre 1899 e 1902 -portanto muito antes da Segunda Grande Guerra, foi constatado que 50% dos homens jovens da Grã-Bretanha -arregimentados para a Guerra dos Boers, estavam inaptos para o serviço militar, devido a uma "deterioração física nacional" provocada pela administração de leite em pó desnatado àquelas outrora crianças que então se alistavam (Mike Miller, The Baby Killer, 1995:49). A mamadeira industrial já existia naquela época;
- em 1946, um inquérito da Dra. Margaret Robinson, relatou que a taxa de mortalidade de bebês amamentados no primeiro ano de vida em Liverpool - Inglaterra, era de 10,2 por mil, enquanto a de bebês alimentados por mamadeira alcançava a cifra de 57,3 por mil.

Essas informações não chegavam às pessoas, ficando restritas a círculos militares e científicos.

Então nos transportemos de volta aos dias atuais, quando temos acesso facilitado -caso a gente queira- a informações sobre a superioridade da amamentação e os riscos da alimentação artificial de bebês.  Eu tenho assistido, pessoalmente, a situações em que se recorre à mamadeira depois de esgotar as possibilidades de uma amamentação natural, com mães cientes de seus perigos mas aliviadas por, finalmente, verem seus filhos engordarem como se espera.

Sinceramente? Estou pra ver outro produto que tenha conseguido criar lugar tão cativo na mentalidade social, apesar dos riscos que acarreta ... 

Mas isso está mudando.

Está mudando.