sábado, 26 de maio de 2012

Exposição "Simulacro", de Daniel Mattar



Depois que cheguei em casa, antes de dormir, escovei os dentes, lavei o rosto e puxei o cabelo pra tras, num rabo de cavalo. Atentei para o que via no espelho: um rosto comum, com as rugas de quem já passou dos cinquenta anos, as manchas, as marcas dos óculos maltratando o nariz, aqueles cabelos brancos, mais grossos, que não obedeceram à escova, permanecendo arrepiados. Agora é a hora do sono, pensei. Amanhã lavarei a cabeça e os cachos voltarão. Um pouco de maquiagem vai ajudar também.

Só que uma pergunta me veio: se esse rosto que eu vejo (e que não acho bonito), fosse o de uma boneca hiperealista, eu o acharia bonito? A reprodução perfeita de cada uma das marcas que trago no rosto, o desalinho dos fios brancos, a expressão de todo um dia difícil percorrido, tudo reproduzido artificialmente em uma boneca com o capricho, a perfeição de um expert em bonecas... Eu acharia lindo, simplesmente lindo. E esses pensamentos me devolveram o respeito e a admiração por meu rosto naquela noite. É, sou assim. Isso em mim é beleza.

É que depois da PUC eu saltara do ônibus um ponto antes para visitar uma exposição de fotografias no Espaço Sérgio Porto, Humaitá. Uma exposição de fotografias de produtos japoneses, resultado de uma viagem ao Japão do fotógrafo de moda Daniel Mattar (Simulacro, em cartaz até 10 de junho).

Produtos, quais produtos? Máquinas de refrigerantes, de biscoitos, robôs, personagens e bonecas acompanhantes. E a boneca que ficava bem em frente à porta de entrada era essa, Saori:




Linda. Delicada. Expressiva. Perfeita.

Saori é um produto japonês, assim como todas as outras bonecas cujos rostos estão na imagem que abre este post. Os japoneses as compram para que elas lhes façam companhia, em vários sentidos. Soube que eles chegam a levá-las em viagens, e pra tanto disfarçam sua presença colocando-as em grandes caixas de instrumentos musicais.

Elas não são infláveis, como os toscos exemplares que inauguraram sua presença no mundo dos produtos. São de um plástico-pele, como um silicone, suave ao toque. Seus cabelos e pelos são naturais, e os olhos parecem conseguir portar a umidade que caracteriza o olhar dos mortais.

Há quem diga que os seios das japonesas não são tão fartos assim, mas não estamos falando de realidade, e sim de idealização. As bonecas acompanhantes de alguma forma muito contemporânea suprem as necessidades e carências de pessoas, necessidades e carências das mais selvagens às mais humanas e delicadas. Esse é o nosso mundo.

E no nosso mundo não dá pra olhar pra Saori e desferir-lhe críticas violentas. Porque a cultura tem pregado justamente isso: moldem-se para tornar-se mais perfeitas; maquiem-se para realçar sua beleza ou para disfarçar as marcas impiedosas do tempo.

O problema é que, ao obedecermos os ditames da cultura, nos afastamos cada vez mais da capacidade de valorizar aquilo que somos.

Portanto, admiremos a beleza dos produtos sim.

O que me perturba nisso tudo, na verdade, é que os tais ditames da cultura são capazes de cegar as pessoas, tornando-as produtos também, alijados da capacidade de admirar aquilo que realmente são.

domingo, 20 de maio de 2012

Todos podem contribuir para a doação de leite materno



O Instituto Fernandes Figueira está incrementando sua campanha de doação de frascos para a doação de leite materno.

E todos podemos contribuir.

Sabe aqueles vidros de Nescafé, ou de maionese? O importante é que eles tenham o corpo de vidro e tampa de rosca plástica, pois assim podem ser esterilizados para esse uso.

Com a ajuda da aluna Mariana Ribeiro, eu montei um posto de coleta desses frascos lá na PUC há mais de 5 anos. E nossa comunidade vem participando.

O IFF, então, está incentivando as pessoas a montarem postos de coleta. Nos prédios, nas escolas, em lojas, supermercados etc.

É simples: só colocar um cartaz (que pode ser esse aí) e uma caixa.
Quando a quantidade de doações alcançar um número razoável, ligar pros telefones 2254-1858 ou 2254-1943. O rapaz do IFF vem de moto buscar.

Daí pra frente, os frascos são higienizados e levados às mães doadoras.

Participe!

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Céus, nos protejam




Acabo de assistir ao filme "Flor do deserto" na televisão.

É claro que eu já tinha informação sobre a prática de mutilação da genitália feminina em países da África (e talvez da Ásia), mas sempre fugi da busca por detalhes, tal o horror que isso nos causa.

O filme conta a história de Waris Dirie, uma menina somaliana que se tornou top model. Aos dois anos de idade, seguindo os costumes de sua gente, Waris foi levada por sua mãe para a mutilação. Cresceu e acabou fugindo da Somália, vindo a ser descoberta por um famoso fotógrafo que disparou sua carreira.

Mas ela decidiu contar sua história e hoje é embaixadora da ONU, na luta contra essa monstruosa prática. Este é o link para seu site http://www.desertflowerfoundation.org/en/.

Daí eu fico pensando: céus, como a cultura pode nos mutilar... e quanta determinação é necessário que tenhamos pra enfrentar a cultura, para analisá-la criticamente e combater aquilo que de inaceitável ela nos impõe. E com que "naturalidade" tantas vezes absorvemos suas regras ...

Por quantas espécies de mutilações passamos? Acho que ocidentalmente nossas mutilações são simbólicas. Não necessariamente vertem sangue, mas se apoderam da nossa consciência, da nossa sensatez e penetram na estrutura do que somos.

O quê? A quê me refiro? A tudo aquilo que nem percebemos descer à força por nossas goelas, como virar repositório de silicone, mutilando, em prol de valores torpes, a capacidade de alimentar o ser que geramos.

E isso é só um exemplo.

domingo, 13 de maio de 2012

Xingu: o que realmente importa


Eu sei muito mais sobre as novelas da TV Globo, as tendências da moda, os lançamentos das grandes corporações, as falcatruas da política brasileira, do que sobre a questão indígena brasileira.

Eu só sei o que hoje sei sobre os problemas da mamadeira porque meio que furei uma bolha com muito ímpeto e fui estudar a fundo a questão.

Eu tenho índio na família. Índio paraguaio. Meu corpo é de índio, e nunca achei isso bonito. Mas de algum modo me orgulhei sempre dessa ancestralidade.

Quando estudante universitária, era fã de Darçy Ribeiro, porque sua causa mexia em algum ponto obscuro de mim. Uma vez, depois de assistir a uma palestra dele, na Associação Brasileira de Imprensa, percebi que estávamos no mesmo elevador: eu achei que iria morrer, tal a honra. E anos depois, quando ele já estava doente, o encontrei em sua casa (eu trabalhava no escritório de design de sua mulher). Ele me olhou e disse: "seus cabelos são azuis de tão negros", talvez o maior elogio que recebi na vida.

Ontem fui assistir ao filme Xingu, de Cao Hamburger. Normalmente esse tema não me chamaria a atenção. Mas fui porque há uma forte possibilidade de eu ser banca de uma tese de doutorado na Colômbia, em julho, e o trabalho versa sobre a questão indígena de lá. Então, novamente, assumo a postura de "furar a bolha" do que o mundo me oferece com facilidade, pra estudar um assunto que não entraria na minha pauta naturalmente.

E nesse Dia das Mães - data que nunca comemoro pela pesada carga comercial que representa- me sinto triste por reconhecer o quanto ignoramos sobre o que realmente importa, sobre o que - ao meu ver- realmente vale à pena.

Enquanto escrevo, meu marido prepara o almoço, porque hoje o dia é proibitivo pra tentar almoçar fora: os restaurantes estão lotados com a comemoração da data. Nos resguardamos da euforia, sem desconhecer a importância da maternidade, mas pensando também em quantas mulheres penam com este dia, por terem perdido seus filhos, por nunca terem podido ser mães, por serem cobradas por isso sem ter vontade de ser mãe. É a pauta, massacrante pauta, ao meu ver.

E os índios? O que é o Parque Indígena do Xingu? Como ele estará agora, após 50 anos de sua criação? Os indios conseguem preservar suas tradições? Difícil ... As queimadas ao largo das fronteiras do Parque já reduziram a quantidade e a qualidade da água do rio, eu li....

Durante minha tese, eu aprendi que as índias se recusaram a amamentar os filhos dos portugueses. Pra elas, saber que seus filhos mamaram no seio de outra mulher era um absurdo: elas faziam os filhos vomitarem quando descobriam que isso havia acontecido.

Índio ... parece que índio é assim: não se dobra às imposições, ou pelo menos resiste muito. Mas precisam de proteção. E quem nos protege?

No trabalho lá da Colômbia, que estou lendo, há registro de que os índios mentem aos colonizadores, fingindo aderir às suas doutrinas.

Índios não se dobram.

E nos perdemos deles.

Nos perdemos de sua fibra.

Fibra.

Azul, de tão negra.