domingo, 11 de março de 2018

Textos. O que querem os textos?



O post de hoje é pra comentar o quanto, sem perceber, recebemos notícias que podem nos influenciar à adesão a correntezas de mercado que nos conduzem à realização do interesse de outrem.

Há alguns dias, recebi de um amigo, pelo zap, o link para a matéria Como a invenção do leite em fórmula revolucionou o mercado de trabalho, publicada no site da BBC.

Interessada, parti para a leitura. Já pelo meio da coisa comecei a identificar a presença de sinais muito mais ou menos no artigo, suspeitando da presença de intenções comerciais nas entrelinhas, mas também nas próprias linhas do texto. Ao voltar para o cabeçalho e constatar a ausência do nome do autor, decidi dedicar mais tempo à questão.

Hoje reli o texto e investiguei um pouco mais, deparando com características de publicação que serviram para agravar minha suspeita inicial:

- o artigo se apresenta de maneira idêntica (com as mesmas fotos, nas mesmas posições de diagramação) em vários sites confiáveis enquanto fonte de informação: BBC Brasil, Folha. UOL, Terra, News Below e Brasil News;

- a forma é tão igual, que lá pelas tantas surge um subtítulo em inglês - Rigorous study - que nos parece um errinho na edição, mas que também pode ser entendido como uma forma subliminar de impressionar o leitor quanto à seriedade da informação que ali está, pelo recurso do uso da língua inglesa, que aprendemos a respeitar mais do que qualquer outro idioma, a adjetivar o conteúdo apresentado;

- em nenhuma dessas publicações o texto está assinado. Não tenho certeza, mas acho que isso caracteriza as "matérias compradas", que são artigos escritos por empresas que pagam por sua publicação.


Sugiro que, antes da decupagem que vou realizar agora, o texto seja lido por vocês. O fato é que ele está totalmente palatável, simples e aceitável, e é justamente esse o problema: a gente tende a absorver naturalmente seu conteúdo sem questioná-lo.

Vou fazer então uma pinçagem de trechos da matéria, demarcando o modo com que foram redigidos e encadeados.




Após o título, vem imediatamente a data (julho de 2017) e essa foto de mamadeira aparece com  o crédito da Getty Images, importante banco de imagens.

É então narrada a erupção do Monte Tambora, na Indonésia, em 1815, que provocou o bloqueio da luz do sol no hemisfério norte devido à espessa nuvem de cinzas que as explosões produziram. A agricultura entrou em colapso, trazendo grave escassez de alimentos às populações. O desejo do químico alemão Justus von Liebig em prevenir a fome, conduziu-o a criações como fertilizantes, extrato de carne e, em 1865, à Comida Solúvel para Bebês, "pó feito à base de leite de vaca, farinha de trigo e bicarbonato de potássio".


Agora passo a citar o artigo (os grifos são meus):

"Era o primeiro substituto comercial para o leite materno derivado de um estudo científico rigoroso. Liebig sabia que nem todo bebê tinha uma mãe capaz de amamentá-lo".

O texto descreve que naqueles tempos ("antes da modernização da medicina"), muitas mães morriam no parto e que "algumas mulheres tampouco conseguem produzir leite suficiente - estudos sugerem que o problema pode atingir uma a cada 20".

Comento: Essas frases se referem ao passado (séc. XIX), mas suas palavras são inclusivas às mães de agora. Tão inclusivas, que em uma delas o autor emprega o Presente como tempo verbal (algumas mulheres tampouco conseguem produzir leite suficiente), emendando com um dado pretensamente científico, mas vago, de que estudos sugerem ... Quais estudos? Não é fornecida nenhuma informação. Realmente há mães que não conseguem amamentar, claro, mas guardemos essa frase no Presente e continuemos na leitura.


Seguindo, surge uma indagação que faz a primeira relação com o tema da matéria, a revolução do mercado de trabalho:

"O que acontecia com os bebês, então, antes da invenção da fórmula?" A tarefa das amas de leite é citada, assim como o recurso do leite de cabra, papas de pão e água "servidas em recipientes difíceis de limpar - e possivelmente infestados de bactérias", fator que é utilizado para justificar que um índice altíssimo de bebês não amamentados tenha morrido precocemente naquela época. Este é um alerta claro à falta de higiene. Mas vejamos como prossegue o texto:

"Coincidentemente o bico de mamadeira acabara de ser inventado. E como as pessoas já sabiam da existência de germes, a fórmula rapidamente alcançou um mercado maior do que apenas o de mulheres que não podiam amamentar".

Comento: O texto diz que as pessoas, já cientes da existência dos germes, foram aderindo à fórmula mesmo que pudessem amamentar. A mensagem transmitida, então, é a de que o receio dos germes e do seu potencial de infecção fez com que a sociedade substituísse a amamentação pela fórmula, mais "higiênica", mais "limpa" do que o seio materno. E vejam, a menção aqui não foi às amas, e sim às mulheres que podiam amamentar e optaram por não fazê-lo.


Seguindo:

"A Comida Solúvel para Bebês democratizou um estilo de vida anteriormente apenas disponível para os mais abastados".

Comento: Antes, o oculto autor da matéria havia dito que apenas os mais ricos tinham como contratar amas de leite. Que seja. Mas a fórmula não democratiza aquele estilo de vida de entregar os filhos ás amas. A fórmula é um novo tipo de procedimento para alimentar bebês, por intermédio da mamadeira. A frase mistura as duas ideias - que precisariam ser explicitadas - numa síntese que se vale de termos como democratizou, que têm muito apelo para o leitor. Mas são dois estilos de vida diferentes: entregar o bebê para a ama é um deles; alimentar o bebê com fórmula é outro. O efeito disso, em nossa leitura, é considerar a fórmula democrática, não mais restrita às famílias mais abastadas. Ou seja, uma informação truncada...


Seguindo:

"Trata-se de uma opção que moldou o mercado de trabalho moderno. Para muitas novas mães que querem - ou precisam - voltar a trabalhar, a fórmula é uma dádiva. E mulheres têm razões para se preocupar com a ausência do trabalho e sobre como tudo isso pode afetar suas carreiras".

Comento: A rigor, não há mentiras aqui. Sabemos o quanto essa situação se fez real, por mais perversa que seja. Mas adjetivar a fórmula como uma dádiva é sintomático dos interesses da matéria. Ainda mais quando a frase seguinte aponta o risco de as mulheres mães perderem seus trabalhos e ferrarem com sua carreira. No meu entender, o texto é direto, dizendo sem meias palavras: _ Ou você adere à fórmula ou a sua vida profissional dança. E tudo isso é dito antes de o artigo se referir à questão da licença maternidade, ao fato de que o leite materno é insuperável em qualidade para a saúde do bebê. Apenas depois dessa "sensibilização" ao uso da fórmula e da mamadeira é que virão informações sobre tais pontos.


Mais adiante, sob o subtítulo "Fosso salarial", o texto diz que, ao formar uma família, as mulheres têm mais motivos para se ausentar do trabalho do que os homens, comentando que países escandinavos dão licenças-paternidade mais extensas. E emenda:

"O leite de fórmula torna muito mais fácil para o pai assumir o controle enquanto a mãe vai trabalhar. Claro, existe a opção da bomba-extratora de leite materno. Mas, para alguns, isso é mais complicado do que usar a fórmula".

Comento: Alguns países têm como política de Estado a concessão de longas licenças que podem ser administradas, em sua duração, pelo homem e pela mulher que tiveram um filho (na Suécia a duração da licença é a mais longa: um ano e quatro meses). Nesses lugares (incluindo os demais países escandinavos - Dinamarca, Islândia, Finlândia, Noruega) entende-se ser um investimento social, político, econômico e ambiental proporcionar condições favoráveis ao casal que gerou uma criança. Mas o texto se vale desse fato para afirmar que a fórmula é muito mais fácil de ser administrada pelo pai que assume os cuidados com o bebê na licença que lhe é concedida. E antes que o leitor se lembre de que a mãe poderia retirar seu próprio leite para o pai dá-lo à criança, o texto se apressa em dizer que "para alguns, isso é mais complicado do que usar a fórmula".

Devo dizer que, nesse ponto da leitura, eu já estava convencida de que a matéria havia sido escrita por encomenda da indústria de leites artificiais e que nada seria dito sobre a superioridade do leite materno, sobre a diretriz mundial de defesa a amamentação...

Mas eis que algumas frases vêm me surpreender, fazendo referência a estas informações, inclusive citando a revista científica The Lancet, onde recentemente foram publicadas pesquisas de sumo interesse sobre o assunto. Frases curtas, parágrafos curtos onde ideias complexas são tratadas como anotações ..., menção a fabricantes de fórmulas inescrupulosos logo seguida de um tipo de mea culpa da Nestlé, que ao anunciar que adotaria as recomendações da Organização Mundial da Saúde foi "a primeira empresa do mundo a fazê-lo".

Bom, se eu estava tendendo a pensar que, tal-vez -pelo fato de o artigo ter tratado, mesmo que em pinceladas, do valor do leite materno, da revista científica e da OMS- a indústria não estivesse por trás do texto, voltei atrás depois dessa frase que coloca a Nestlé num podium: "a primeira do mundo a fazê-lo".

Seguindo:

"Mas recomendações não são leis, e ativistas argumentam que ainda são ignoradas ao redor do mundo".

Comento: Que frase é essa? O Código Internacional de Controle de Substitutos do Leite Materno, em toda a sua importância, é reduzido na frase a um "conselho", e ativistas ... quem são eles? talvez uns agitadores que reclamam ...


Então o fechamento do artigo, no subtítulo Rede de abastecimento:

"Mas se houvesse uma forma de termos o melhor dos dois mundos: oportunidades iguais para mães e pais, e leite materno para os bebês sem as complicações da extração? Talvez já haja.

No Estado de Utah (EUA), há uma companhia chamada Ambrosia Labs. Seu negócio? O comércio de leite materno: a empresa paga mães ao redor do mundo por seu leite e, depois de testar a qualidade, vende para mães americanas.

Custa caro - cerca de R$ 315 reais o litro -, mas esse custo poderia diminuir com a ampliação do serviço. Governos também poderiam aplicar impostos sobre a fórmula para subsidiar o leite materno.

Nem todo mundo aprova a ideia. O governo do Camboja, um país em que Ambrosia operava, baniu as exportações de leite materno.

Mais de 150 anos depois de Justus von Liebig praticamente extinguir a profissão de ama de leite, a cadeia de suprimentos global pode acabar ressuscitando-a".


Vamos por partes.

Ambrosia. Ambrosia é o doce que eu mais amo nesse mundo! Durante toda a minha vida, no dia do meu aniversário, minha mãe fazia ambrosia, o doce mais delicioso do mundo, à base de ovos, leite e açúcar.

Mas fui procurar o significado que essa palavra tem para justificar sua adoção em uma empresa que comercializa leite materno: alimento dos deuses do Olimpo, que concedia e mantinha a imortalidade.

A companhia Ambrosia Labs paga às mães por seu leite para vendê-lo a mulheres americanas.

Eu e muita gente já sabíamos disso. Sabíamos também que grandes corporações estão tentando identificar os inúmeros componentes do leite materno, considerado o melhor alimento do mundo, para reproduzi-los sei lá como e vendê-los.

Sempre a venda, o comércio.

O que pensar sobre a comercialização do leite materno?

O artigo lança palavras ao vento pra que a gente ache que isso é uma saída incrível, maravilhosa, revolucionária.

É? Vendemos ou doamos sangue? Vendemos ou doamos órgãos de um parente morto?

Vende-se esperma. Alugam-se barrigas para gerar crianças. Isso já é naturalizado em muitos lugares do mundo.

Enfim, pensemos nós sobre a questão.

Cuidado com textos.