sábado, 23 de julho de 2011

Liberdade?


Volta e meia recebo de pessoas amigas artigos e dicas de matérias, lançamentos de produtos e discussões sobre a questão amamamentação x leites artificiais e mamadeiras. Desta vez a contribuição veio de Fernando Carvalho, ex-aluno, amigo, colega no design da PUC e parceirão desde os tempos de minha pesquisa de doutorado até a atual empresa de projeto de um copinho.

A matéria em questão é "Leite materno vira mercadoria em site especializado nos EUA", de Daniel Buarque, publicada no G1 em 11 de julho de 2010, disponível em
http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2011/07/leite-materno-vira-mercadoria-em-site-especializado-nos-eua.html .

Em síntese, o site "Only the Breast" vem comercializando leite humano pela internet. Originalmente, a ideia do site é "valorizar a importância do leite materno para o desenvolvimento do bebê", promovendo a amamentação. Lá há instruções de como ordenhar, armazenar e enviar o leite pelo correio "sem riscos". Bom, do pouco que conheço desse processo (que não é tão pouco assim), fico de cabelo em pé ao imaginar o manuseio e processamento de uma coisa tão delicada sendo feito autonomamente pelas mães. No Banco de Leite do IFF é muito impactante acompanhar todos os cuidados que eles tomam com o leite doado, sua procedência, a metodologia de processamento, o exame cuidadoso que se realiza para dosar a quantidade de gordura adequada para cada receptor daquele leite, de acordo com suas necessidades. Já pensou? adquirir leite humano de um "fornecedor" pela internet? A antiga prática da ama de leite ao menos permitia que houvesse contato e algum conhecimento sobre quem (e em quais condições) alimentava os bebês de outrem.

Ok, mas o que pretendo com este post não é demonstrar indignação, e sim refletir sobre por que cargas d'água embarcamos com tanta devoção na lógica industrial e consumista. Pra isso, mais alguns detalhes da matéria são necessários.

Tina Faye teve bebê e ele não aceitou tomar seu leite. Como sua produção era farta, ela ficou penalizada de jogá-lo fora. Mãe recente, estava em casa, economicamente improdutiva, vendo o citado site como uma oportunidade interessante e relevante. Cada 30 ml de leite valem US$ 3 (R$ 5). Com isso ela vem levantando mensalmente cerca de US$ 1.200. Como ela, perto de 3 mil mães vêm recorrendo à prática, considerada perigosa no artigo pela pediatra brasileira Ana Maria Escobar.

"Faye é parte de um mercado crescente e controverso nos Estados Unidos", país cuja cultura tende a autorizar a visão comercial para tudo que possa ser considerado mercadoria.

Daí, no final da matéria, a designer Mônica Mello (que mora em Nova Iorque há 12 anos), diz: "amamentar não é prático, dá trabalho, e por isso é aceito que as mãe vendam o leite".

Caramba!, até aí eu estava achando que as mães vendiam o leite excedente, aquele que sobrava da amamentação de seus filhos. Lendo isso, fiquei com a sensação (e deve ser isso mesmo) de que elas partem pros leites artificiais e mamadeiras logo de cara porque amamentar é chato e dá trabalho!!!!

(Não me contenho: ter filho dá trabalho, pombas! Uma vez, numa aula de Projeto, recebi a proposta de uma aluna que pretendia projetar um aparato para amarrar a criança na cadeirinha de restaurantes, de modo a que seus pais "tivessem paz" durante o jantar. Juro. Recomendei a ela que não tivesse filhos, ao menos não os tivesse antes de entender o non sense do que havia me dito. Ela cancelou a disciplina.)

Bom, mas também oreintei há alguns anos o projeto final de duas alunas, dedicado a criar argumentação gráfica para o Abiosorvente, um absorvente higiênico reaproveitável, fenômeno mundial entre as mulheres ecologicamente antenadas. Concordei com tudo, considerei o produto excepcional ... mas não aderi. Até o final de minha vida fértil continuei usando o absorvente descartável (e olha que quando mocinha eu usei a toalhinha higiênica, assim como usaram todas as gerações que precederam a minha). Eu visualizei a montanha de lixo acumulada pelo descarte desses produtos, constatei os efeitos do branqueador empregado para promover a alvura de cada absorvente, reconheci os prováveis efeitos químicos do produto sobre a saúde. Não consegui, não abri mão do conforto.

Os leites artificiais e as mamadeiras trazem um conforto do qual as mães tendem a não abrir mão também. Os produtos industriais possibilitam confortos dos quais as pessoas tendem a não abrir mão. Eles nos permitem executar tarefas antes "prosaicas" com praticidade e até requinte, tal como pode exemplificar o uso de talheres. Isso é civilização, os produtos nos trazem LIBERDADE.

E foi isso que me fez, durante a pesquisa de doutorado, cursar a disciplina "Teoria Política e Econômica", com o grande e querido professor José Maria Gomes. O que é a liberdade? O que é Progresso? O que é Desenvolvimento? (pra quem se interessar, esse virou um capítulo de minha tese, disponível no site da IBFAN e agora também na Biblioteca Virtual da FIOCRUZ).

Mas é o designer espanhol André Ricard que me permitirá concluir esse post com alguma coerência:

"Os artefatos que o homem criou para libertar-se, acabam também por escravizá-lo. Se por uma parte o ajudam, por outra o constrangem. (...) Estas máquinas e aparatos que nos auxiliam, que se fazem cada vez mais imprescindíveis, precisamente porque nos possibilitam uma maior eficácia. (...) Existe tal simpatia entre essas coisas e nós que, quando algo em nosso entorno objetual familiar sofre uma avaria, nos sentimos como se tivéssemos adoecido. É como se nosso sistema vegetativo estivesse efetivamente conectado a este equipamento externo: somatizamos seus problemas. As coisas são uma espécie de ortopedia para nós e nos relacionamos com elas como se se tratassem de autênticas próteses" (livre tradução para o português de matéria publicada na revista Foroalfa).

E, resgatando o nó do tema, o argumento impecável de Andrew Radford:

"Os aparelhos de diálise são capazes de realizar a função dos rins em caso de necessidade. A mamadeira pode realizar a função do seio materno em caso de necessidade. O problema está em que ninguém propõe que os aparelhos de diálise substituam os rins, enquanto que é proposto que a mamadeira substitua o seio materno".

Perdemos o senso?

Um comentário:

  1. Olá Cristine! Estou seguindo seu blog há algum tempo e simplesmente me vejo nitidamente em algumas postagens. A de hoje foi uma delas. Amamentei até o décimo mês e digo que EU fui desmamada. Meu filho parou de mamar por decisão própria. Depois desse episódio, passei a usar a tal da mamadeira, acessório o qual, hoje, tenho nojo e sou escrava! Agora lendo seu blog, decidi de uma vez por todas, exterminar elas de nossa casa e casa dos avós, afinal, todo mundo ama uma mamadeira :s estou grávida de 32 semanas e tenho a intenção de usar somente o copo após o sexto mês (naquela fase de sucos...) o qual vc fala aqui no seu blog é comercializável? O que vc nos indicaria? Enfim... Parabéns pela tese e força nessa tão difícil "tarefa" que é informar com qualidade e consequentemente quebrar tabus! Abraços, Mariana.
    www.mamiimari.com

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