Ser “blogueira” a cada dia se revela uma experiência mais fascinante. Você passa a conhecer pessoas, em qualquer canto do mundo, com interesses semelhantes aos seus e com muito a te acrescentar acerca do tema do blog.
Posso dizer que hoje tenho profícuas amizades com pessoas que conheci aqui. E com algumas delas já marquei encontros muito prazerosos que se estendem em permanentes colaborações.
Pois Marisa Silveira, brasileira moradora de Washington, a quem conheci motivada pela sua expertise em fraldas reaproveitáveis (tema de alguns de meus posts), outro dia me apresentou de lá, dos EUA, o site de um pediatra daqui de pertinho, do Jardim Botânico – RJ. Esse o fascínio de estar em rede :o)
O Dr. Daniel Becker escreve sobre os mais diversos assuntos de interesse da pediatria (http://www.pediatriaintegral.com.br/), e muito me impressionou o texto enviado por Marisa, o segundo de uma série, que trata da relação pra lá de preocupante entre a indústria de fórmulas infantis e os pediatras.
Tratei disso em minha tese também, pois não há como ignorar que a cultura da mamadeira e dos leites artificiais está plantada em nossa sociedade com profundas e nocivas raízes.
Nossa tendência é confiar nos conselhos médicos. Porém, informação e bom senso são elementos indispensáveis para que não façamos “papel de bobo”.
Pedi licença ao Dr. Daniel, e reproduzo a seguir seu texto. Indispensável.
A Rendição dos Médicos
No final do último capítulo, contamos como as empresas fabricantes de leite em pó mudaram suas estratégias: em vez de vender fórmulas para as mães, venderiam para os pediatras. A ideia era conquistar a simpatia desses profissionais com tanta autoridade no que se refere à saúde da criança, e capazes de recomendar as suas fórmulas mesmo diante das evidências crescentes de que o leite materno era o alimento ideal para o bebê.
A Nestlé foi a mais agressiva nesta estratégia. Em nosso pais, ela conseguiu dominar inteiramente a Sociedade Brasileira de Pediatria. É uma situação muito curiosa: o discurso da sociedade é fortemente favorável ao leite materno, com recomendações de amamentação exclusiva até os 6 meses, comitês e documentos, bandeiras pró amamentação com a da licença de seis meses para as mulheres, etc. Por outro lado, quase todos os documentos, manuais, avisos de congresso, circulares, cursos de atualização, enfim, qualquer publicação da SBP tem o selo Nestlé enorme, gravado na capa. A maioria das atividades da SBP tem o patrocínio da Nestlé. Mais publicações e aulas são realizadas sobre os melhores “substitutos do leite materno”, do que as que ensinam como apoiar efetivamente uma mulher que amamenta.
A Nestlé oferece um curso anual de atualização em pediatria, em parceria com a Sociedade, que é tão ou mais popular que os principais congressos. Aqui no Pediatria Integral, fiz uma reportagem sobre a impressionante infantilização dos pediatras nesta ocasião: adultos participando de joguinhos infantis e competições de perguntas sobre os produtos Nestlé para ganhar bichinhos de pelúcia e sorvetes, consumindo biscoitos e leitinhos, e pior, comendo papinhas de bebê servidas por chefs em travessas de prata. As cenas eram patéticas - vocês podem conferir as fotos aqui no PI. A grande mãe tratando bem seus bebês, e esperando em troca uma enorme gratidão e reconhecimento.
Além da Nestlé, várias outras empresas fazem visitas constantes aos consultórios pediátricos oferecendo informações sobre seus muitos tipos de leite e suas inúmeras vantagens uns sobre os outros, todos tão “parecidos com o leite materno”. A amamentação é obviamente ignorada nessas visitas que muitas vezes terminam em farta distribuição de brindes, almoços em churrascarias e mesmo convites para visitas às sedes no exterior ou viagens a congressos.
Essa estratégia comercial segue o principio sócio-comportamental da “reciprocidade”. Quando alguém lhe oferece presentes, graças e gentilezas, você se sente em dívida com quem fez o gesto; cria-se uma simpatia difícil de resistir. Devolver as gentilezas é quase inevitável. É claro que este não é o único motivo, mas este é certamente um dos fatores que explicam tantas prescrições de leite em pó, mesmo ainda na maternidade. Uma estratégia cruel da indústria, mas extremamente e inteligente eficaz para vender os seus produtos e sabotar a amamentação. Da mesma forma que a imagem do leite em pó como sendo “mais forte” minava a confiança das mulheres em seu leite, também a prescrição apressada ou descuidada de complementos (“se você achar que tem pouco leite”, “se ela estiver com muita fome”... “uma mamadeira pra você descansar um pouco”...) é um fator claro e freqüente para que a mulher deixe de amamentar. Se em vez da mamadeira de leite artificial que mina a confiança da mulher, oferecermos informação, apoio e o carinho e técnica de profissionais especializados, o quadro certamente será outro.
Portanto vemos aqui, de saída, duas razões importantes para a dificuldade de amamentar percebida por tantas mulheres: a cultura do leite em pó, que persiste até hoje, nos fazendo duvidar da qualidade e da força do leite materno como suficiente para alimentar um bebê; e a facilidade com que alguns pediatras prescrevem o leite em pó, antes mesmo de surgir qualquer problema na mãe ou no bebê.
Há ainda um terceiro problema, ainda no terreno da medicina – ou, melhor dizendo, da má medicina. Veremos isso no próximo capítulo – em breve.
O texto é espetacular! Tapa na cara...
ResponderExcluirEu tenho tido a seguinte reflexão: As mamadeiras e os leites artificiais existem porque as mães não conseguem amamentar ou as mães não conseguem amamentar porque as mamadeiras e os leites artificiais existem? Cariny Cielo
Cariny, sua indagação resume tudo! Peço licença pra desenvolver sua frase em um post. Aguardo :o)
ResponderExcluirNão existe palavra melhor do que "promiscua" para definir a relação da Nestlé com a Sociedade Brasileira de Pediatria! Uma professora minha muito respeitada participou por algum tempo do corpo editorial do Jornal de Pediatria, editado pela SBP. Porém, ela não aguentou mais e desistiu porque TODOS, TODOS os artigos publicados tinham que ter um "ok" da Nestlé.
ResponderExcluirIr nos congressos e ver um bando de adultos se batendo por causa de pelúcias é inacreditável.
O que mais me preocupa é que a cultura do leite se perpetua principalmente entre as mães mais carentes, que não tem acesso a informação e muito menos a uma rede de multiprofissional que apoie a amamentação. Acabam acreditando nos mitos criados pela indústria farmacêutica e oferecendo mamadeiras cheias de porcaria pras crianças, levando a um sem-numero de comorbidades futuras...
Enfim, fico muito feliz sempre que vejo mães-cientistas, que além de buscar o conhecimento para si, divulgam para outras mães :)
E viva o aleitamento!
Gabriela, futura pediatra :))
Gabriela, desculpe pela demora em responder, tá? Muito obrigada por seu comentário! Realmente a Nestlé parece mandar na área, uma coisa realmente pesada. Mas o movimento pró-aleitamento vem crescendo, e a cada dia fico mais espantada ao constatar o tamanho da rede internacional que luta por isso. E sobre a camada mais carente da população, pelo que sei os hospitais públicos têm um esquema pró-aleitamento pelo fato de o Brasil ser signatário da aliança internacional. Elas muitas vezes recebem a orientação correta, mas como o padrão é a mamadeira (seguido pelas classes mais altas, que acorrem aos hospitais particulares onde a cesariana é liberada etc.), acabam tendendo a aderir. Por isso acredito que as classes média e alta são um público estratégico para a mudança de cultura, pois ditam comportamento. E fico também muito feliz em ver futuros profissionais da saúde, como você, com uma postura informada e crítica. Beijos e muito prazer!
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