sábado, 21 de agosto de 2021

Nunca estaremos a salvo

Foto de Paula Bronstein - Getty

 

E agora? O que virá além de tudo? O que dizer às crianças? O que pensar ...
Esse ninho provisório que reúne o que nos sobrou é tão vulnerável quanto a qualidade daquilo que nos resta. O que nos resta? 

Uma madona contemporânea afegã e seus filhos. Os olhos dos três me parecem vazios, exaustos. O que conforta as crianças é o corpo da mãe, que ainda os tem por perto. Até quando? Sob quais condições?

A imagem tem uma beleza mais que triste, desalentadora. São células plásticas em espera, guardando vidas sem conseguir protegê-las.

Nunca estaremos a salvo.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Uma homenagem ao Dr. Hector Martinez, ídolo-amigo que se foi

 




Há alguns dias, esse homem que me abraça nas ruas de Bogotá passou dessa vida. Seu nome, Dr Hector Martinez, pediatra colombiano e criador - junto a seu colega Dr. Edgar Rey Sanabria, de uma dos inventos mais encantadores e revolucionários do mundo: a Metodologia Mãe Canguru.

De ídolo, passou a ser meu amigo e trocamos correspondência, ideias, compartilhamos projetos. Eu tenho tudo impresso e guardado em arquivo, porque sua seriedade e doçura não eram coisa pra se deixar no ciberespaço, mas sim pra tratar como um tesouro.

Nos reencontramos em 2019 aqui no Rio, por ocasião de evento internacional de aleitamento materno. Ah, como foi especial ...

Devo a Marcus Renato de Carvalho, querido amigo e também pediatra, a ponte para que eu conhecesse Hector. Marcus e Luis Mussa Tavares (pediatra-poeta encantador, que cunhou o termo "almas apressadas" para definir os bebês prematuros) me convidaram para desenhar um símbolo comemorativo dos 40 anos do Método, e abriram também espaço para que eu, em texto, declarasse o meu amor por esse sublime trabalho, conquistado com ousadia, muita luta e uma sensatez que arrepia.


Eis o texto:

Há quarenta anos, numa maternidade da periferia de Bogotá, a natureza conseguiu ser ouvida em meio aos apitos descompassados de uma Unidade de Terapia Intensiva cheinha de “almas apressadas” - aqueles bebês que nascem antes de estarem prontos para sair do corpo de suas mães.

Há quarenta anos a natureza conseguiu ser ouvida em meio a todos aqueles aparatos tecnológicos, criados justamente para tentar substituir artificialmente os corpos das mães, seu calor, a nutrição que proporcionam. Só que, com o tempo, aqueles aparatos se “naturalizaram” como destino para todos os prematuros, muitas vezes um destino muito cruel para as almas apressadas.

Alguns ouvidos atentos escutaram o barulho da solidão daqueles bebês, e o tom grave e contínuo da melancolia das famílias que se iam, sem acreditar num futuro.  Esses alguns ouvidos também mediram a distância que separava aqueles dois sons.

O fato é que esses alguns ouvidos escutaram além dos apitos descompassados, por dentre aqueles apitos, em volta deles: havia muitas, muitas outras notas. Pararam então para escrever o que ouviram em uma partitura cheia de desobediências àquelas regras que tinham se naturalizado.

Aos poucos foi-se abrindo espaço para os tons de delicadeza, de suavidade e cuidado. Eles soavam baixinho, mas com tal harmonia que conseguiam desconcertar os apitos, superando-os em efeito.

Era a distância a responsável por aquele barulho que alguns ouvidos escutaram. O corpo da mãe havia, o corpo do bebê havia, o do pai havia, o dos avós e irmãos havia.

Era a distância ...

Livre dela, a natureza se fez ouvir, em toda a sua simplicidade e grandeza.

Essa sinfonia hoje soa livre ao salvar as vidas das almas apressadas.

Muito, muito obrigada, alguns ouvidos.




Muito, muito obrigada. 

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Um resultado de aulas

 



Este foi um dos exercícios produzidos por minha aluna Carol Ramalho na disciplina Teoria e enfoques críticos da Comunicação no Design.

A proposta era a de partir de alguma peça gráfica já publicada por organizações da sociedade civil voltadas a dar visibilidade a graves questões, com o intuito de incentivar os estudantes de Design a dedicar esforços a esse tipo de ativismo, para além das tarefas profissionais mais tradicionais da área.

Carol escolheu o projeto de Rebecca Kaur, selecionado na iniciativa #oneperday20, empreendida pela University for the Real World no ano passado. Tratava-se de peça análoga a essa, abordando o verdadeiro custo humano e ambiental da fast fashion.

Esse impresso que recebemos ao fazer uma compra trivial é familiar a todos que consomem produtos, portanto ele tende a ser imediatamente identificado pelo observador, que no entanto há de se perguntar o que o estará conduzindo a merecer qualquer tipo de destaque. Ao ler, entretanto o texto, os motivos são revelados. E isso exerce um efeito-surpresa muito promissor para a eficácia da comunicação.

Reparem que ela acatou elementos dos muitos símbolos criados para ocasiões de boicote à indústria, dando visibilidade aos efeitos nefastos produzidos pelas fórmulas lácteas (Nasty = sórdido). 

Carol escolheu retratar os filhotes mortos sob o olhar incrédulo da mãe. Uma "sutileza" muito forte que no entanto, graficamente, guarda total analogia com o símbolo original.




PS: os números são simulados (são inúmeros)






sábado, 5 de junho de 2021

Não dá pra ignorar esses fatos


Há uns poucos anos eu recebi em casa o técnico que avaliaria um defeito na impressora. Figura simpática, me viu em meio à papelada de preparação de um artigo sobre os problemas da mamadeira e papeamos um pouco sobre o assunto (eu nunca perco a chance).

Ele ficou muito surpreso com o que lhe contei ... e deu o diagnóstico da impressora: "_Precisarei levar um teste de impressão para ilustrar o problema e volto com a peça um outro dia". E como eu nunca perco a chance, imprimi então a arte-final do cartão de visitas aqui do blog no tal teste. Daí ele me disse que conversaria com sua prima, que coincidentemente era funcionária da Nestlé.

Na semana seguinte voltou e consertou a impressora. E me contou que a prima veio ao blog, ficou horrorizada com as coisas que encontrou sobre a empresa para a qual trabalha e, em conversa telefônica com uma colega da sede suiça indagou: "_ Isso tudo é verdade?". Ao que a indagada respondeu: "É".


Essa história me veio à memória durante a semana, quando soube da matéria do El País sobre o vazamento de um DOCUMENTO INTERNO DA NESTLÉ que reconhece que mais de 60% de seus produtos não são saudáveis e "nunca serão saudáveis".

Vamos aqui lembrar do slogan "NESTLÉ FAZ BEM", e que a indústria se autodenomina "autoridade máxima em nutrição".

Só que quatro categorias de produtos ficaram de fora dessa avaliação de tão graves resultados: nutrição infantil, ração para animais, café e nutrição médica. Imaginem se tivessem sido incluídas no estudo...

Repito então aqui um documentário que ilustra como e quanto os produtos de nutrição infantil fazem mal. A gente não pode ignorar esses fatos.





terça-feira, 20 de abril de 2021

Minha trajetória rumo à pesquisa sobre os problemas da mamadeira


 É com alegria que compartilho a ENTREVISTA que dei à Editora PUC-Rio sobre a trajetória que me conduziu ao desenvolvimento do livro "Amamentação e o desdesign da mamadeira" e à minha atuação desde então (não consegui colocar aqui o vídeo para abertura, mas o link funciona).


segunda-feira, 8 de março de 2021

Que imagem!



Outro dia deparei com essa foto no Instagran de uma amiga e me apaixonei. O momento exato, a família inteira: mãe, pai, bebê, irmã e talvez a avó que a ampara com a mão.

São as mãos do pai que recebem a criança. A posição das pernas da mãe sugerem delicadeza e tranquilidade. A menina viu tudo acontecer e é a primeira a visualizar o irmão. Tem uma naturalidade muito linda em tudo, até nos dedos do pé da mãe que se apóiam na borda da banheira e aqueles da mão (que mal aparecem) firmando a própria coxa; na sandália com meias do pai; na menina de calcinha agachada e atenta. Lindos cinzas, lindas luzes. Um instantâneo pulsante de vida.

A imagem é da fotógrafa holandesa Marijke Thoen e foi premiada em 2016.

Pesquisando um pouco, soube que esse é um corte da imagem inicial, que incluía a mãe de corpo inteiro e que viralizou no Facebook de tão especial. Porém a foto foi removida pela rede social sob o argumento de que o mamilo da mãe aparecia (!), e a conta de Marijke foi bloqueada por 24 horas. Segundo a notícia, o que ocorreu foi o enquadramento da imagem na regra que diz "removeremos fotos com pessoas mostrando seus órgãos genitais ou fotos com nádegas totalmente visíveis. Também limitamos a exibição de seios mostrando o mamilo". Impressiona o quanto essa interpretação é rasa no caso. E em quantos mais não será ... (quando fiz aqui um post sobre a gravidez da tenista norte-americana Serena Williams, também tive minha conta bloqueada na mesma rede social). 

Mas o fato é que esse enquadramento, mais vertical, ficou lindo demais: rico em significado, parecendo que o momento está acontecendo no mesmo instante em que o miramos.




sábado, 23 de janeiro de 2021

De como se ensinava mulheres a fazerem partos no séc. XVIII





Ja faz bastante tempo que guardo essa imagem. Eu a vi solta, em algum lugar, e apenas agora me dediquei a investigar sua origem. A busca foi pelo Google Images e demorou um bom tempo, mas a encontrei. E junto com ela uma história de extrema dedicação e luta de Angélique Marguerite du Caudray.

Dentre os materiais que encontrei, recomendo a leitura do Artigo de Rebecca Halff: sintético, rico e muito informativo. Mas conto um pouquinho.

Madame du Caudray -como era conhecida-  se formou pela Faculdade de Cirurgia de Paris como parteira credenciada, e em 1769 lançou um pequeno livro, desses que cabem no bolso de qualquer avental, sob o título Abrégé de l'art des accouchements (Compêndio da arte do parto). Quisera termos acesso a uma publicação assim! Vejam só uma das lindas ilustrações:



Naquela época, as mulheres perdiam para os médicos obstetras a função de ajudar a nascer bebês. Enquanto aluna da Faculdade, Madame du Caudray ainda presenciou a prática de acesso livre a mulheres não matriculadas nas palestras de cirurgia. Mas elas acabaram sendo proibidas de frequentá-las. São na verdade muito impressionantes as mudanças sociais que se operam na sociedade, os artifícios empregados, a retirada paulatina do poder dos membros da comunidade em agirem como tal, como comunidade ...

Só que, além do livro, ela desenvolveu também Modelos de ensino do aparelho reprodutivo feminino, o que representa uma iniciativa de vanguarda dessa médica. Seguem as imagens:







Os modelos são em escala real, produzidos por ela.

Todo mundo já foi aluno aqui. A gente sabe muito bem a diferença que faz estar diante de um modelo tridimensional e de uma explicação teórica ou de desenho esquemático bidimensional. Poder pegar na coisa, dispor de partes anatômicas removíveis, ter diante dos olhos e das mãos um simulador realmente compreensível daquilo que queremos aprender é o que de melhor se pode dispor para adquirir conhecimento acerca de algo tão denso de emoções, incertezas, dor e esperança.

O artigo recomendado acima nos conta que, a pedido do Rei, Madame du Caudray foi para o interior, ensinar às mulheres do ambiente rural a fazerem partos, pois muitos bebês estavam morrendo por inabilidade das parteiras de lá.

Para fechar a história, um daqueles dados que nos fazem "cair das núvens" pra ter que encarar a realidade: a preocupação, na época, era a de "fabricar futuros soldados"...

Fica o brilhantismo dessa médica que há de ter contribuído para salvar muitas vidas, ensinar esse ofício primordial às mulheres e nos encantar com a arte de ensinar.