domingo, 31 de março de 2019

"Sorriso bom, só de dentro"





Vamos imaginar uma praça. Ela é grande, bem localizada no bairro, tem muitas árvores que proporcionam sombra sobre os bancos e a área de recreação. Mas está abandonada. A grama virou mato onde se acumula lixo; as árvores estão tristes; os brinquedos quebrados e enferrujados, assim como os bancos. As crianças não a frequentam mais, nem aqueles que aproveitavam a sombra aos bancos pra lanchar, namorar ou falar ao telefone. Aquela área toda virou um lugar inóspito e perigoso.

Então uma empresa adota a praça arrumando tudinho e fazendo a manutenção constante daquele espaço público. Todo mundo fica contente, a praça se torna um lugar muito melhor até do que já fora um dia. E a empresa coloca ali uma placa que lhe dá, perante os frequentadores e passantes, o reconhecimento pelo feito. A imagem da empresa ganha simpatia e destaque. Seus proprietários e funcionários sentem orgulho de trabalhar lá e as vendas também tendem a aumentar.

A responsabilidade social e ambiental das empresas vem se tornando, há alguns anos, um atributo positivo esperado pelo consumidor de produtos e serviços. Mas ela pode estar sendo também utilizada para nublar e desviar a atenção dos consumidores de uma realidade produtiva praticada pela empresa que não tem nada de bonito ou elogiável, muito pelo contrário.

Há um caso da Nike que pode ilustrar bem a situação, contado por Bruce Mau no livro Massive Change (Phaidon). Muito criticada por suas páticas de emprego (a empresa foi a primeira do mundo a fechar suas fábricas e distribuir as etapas de confecção de seus produtos por países asiáticos, onde remunera infimamente os trabalhadores alcançando, com isso, uma margem de lucro muito maior, prática hiper-corrente hoje em dia), contratou a organização não lucrativa The Natural Step, que se dedica a auxiliar empresas ao sugerir mudanças nos sistemas de negócio pelas lentes da sustentabilidade. O exame realizado resultou na identificação de que as caixas dos tênis da Nike poderiam ser reduzidas de tamanho em pouco mais de um centímetro, mas isso traria grandes resultados: elas se tornariam mais leves e, multiplicando essa redução pelo número de tênis negociados no decorrer de um ano, a diminuição da embalagem "salvaria" 4 milhões de toneladas de matéria-prima (papel, celulose, árvores), resultando numa economia de $1.6 milhões. Bacana? Bacana, mas a Nike exibe isso como responsabilidade ambiental e continua explorando trabalhadores. A isso chama-se green wash, um "banho verde" que acaba credenciando iniciativas pela "fachada", escondendo o que está por tras do belo retrato.

Há poucos dias tive notícia do Programa Crianças Mais Saudáveis, lançado pela Fundação Nestlé Brasil. Trata-se da segunda edição de um concurso para escolas públicas de todo o país que seleciona projetos de promoção aos hábitos saudáveis propostos pela iniciativa: o incentivo ao preparo de refeições ricas em nutrientes a serem compartilhadas em família, a prática de esportes, a ingestão de água. Cursos online, preparo de professores e um prêmio em dinheiro muito significativo completam a proposta. No link do Programa podemos assistir ao vídeo da escola vencedora de 2018, e constatamos a diferença que o prêmio representou para as práticas escolares, para as vidas das crianças e seus familiares e de todo o corpo de professores. Imagino também a dedicação e alegria empenhadas por todo o grupo que concebeu e que põe em prática esse programa que classifico como de responsabilidade social e ambiental.

Mas não fico sossegada.

Eu verdadeiramente adoraria ficar sossegada ao assistir a comerciais de TV que falam maravilhas dos produtos, ao me contentar com os textos que encontro nos sites destes fabricantes, a tão somente acreditar nas explicações e argumentos dados por essas empresas na defesa de suas investidas. Mas não consigo.

Fico me lembrando do relatório The baby killer, que em 1974 denunciou as estratégias de vendas das indústrias fabricantes de leite em pó para bebês e as trágicas consequências do desmame precoce que provocaram, o que ocasionou a mudança do paradigma científico para o reconhecimento da superioridade do leite humano pela OMS. E que mesmo com o movimento mundial que isso acarretou e prossegue acarretando até hoje, a cultura da mamadeira está instalada de tal forma que nada a impede de ser mais e mais lucrativa. Isso me conduz ao documentário Fórmula fix, que mostra o estrago que os leites em pó causam em países pobres e às políticas empresariais que já provocaram muitos boicotes à Nestlé no hemisfério norte.

Lembro também que na região norte do Brasil, a Nestlé inventou um programa para que as donas de casa tornem-se revendedoras de seus produtos, com carrinhos lindos como os de picolé. além de transportá-los em barcos pela rede fluvial até os recantos menos acessíveis. E nisso eu me lembro do filme Muito além do peso, que nos mostra crianças obesas, dependentes dos alimentos industriais, incapazes de reconhecer um legume ou fruta.

E só pra não me alongar demais, lembro também da entrevista de Peter Brabeck, presidente da corporação, defendendo a privatização da água e adjetivando como extremista a opinião das ONGs sobre o direito público à água. Aos 3:44 minutos do vídeo, ele é bem claro ao dizer o que entende por "responsabilidade social". E essa é uma pista muito clara pra gente se dar conta do tamanho do problema em que estamos metidos. Vale assistir.

Enfim, é tudo lindo. Mas na fachada. O que há por detrás é pra lá de perturbador.

E, numa notícia mais recente, deparo com matéria na Revista do IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, denunciando que as indústrias estão vendendo composto lácteo com embalagem e apelos comerciais que fazem o consumidor pensar que se trata de leite, mas não é. Como diz o nutricionista Cristiano Buccolini no artigo, "o composto lácteo é uma invenção da indústria alimentícia, que aproveita subprodutos do processamento do leite de vaca e acrescenta outras substâncias e ingredientes de baixo custo, como gorduras vegetais e açúcares, além de vitaminas e substâncias químicas". Prosseguindo, ele declara: "Costumo dizer que é um 'Frankenstein', porque metade do produto é quase leite de vaca e pouco menos da metade é qualquer coisa menos leite".


Perguntado sobre quais seriam os problemas ocasionados pela ingestão do produto, ele destaca vários:

- que o composto lácteo não é indicado para menores de 3 anos por conter um tipo de açúcar (maltodextrina) de alto índice glicêmico e outros aditivos calóricos, podendo levar à obesidade;

- que o sulfato ferroso presente no composto é pouco absorvido quando consumido junto a fontes de cálcio;

- que o produto não é registrado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e, com falta de regulamentação, "os fabricantes aproveitam para fazer propaganda não ética usando frases de efeito", um desrespeito à NBCAL (Norma Brasileira de Comercialização de Alimentos para lactentes e Crianças de Primeira Infância, Bicos, Chupetas e Mamadeiras).


Então o que acontece é que, de um lado, a empresa proporciona pratos e talheres para crianças que antes comiam com as mãos (vídeo do Programa Crianças Mais Saudáveis) e, por outro, oferece aos nossos organismos substâncias que nos prejudicam, causam o desmame precoce e tudo mais.

Não nos deixemos ludibriar pelas frases de efeito lançadas por quem tem nos trazido pretensas soluções neste cenário de falência das instituições.

A praça é pública. A escola é pública. A água é direito de todos. Há muito por trás da responsabilidade social cantada em verso e prosa.

Como disse Tayguara, na música Piano e viola:

Sorriso bom, só de dentro. 
(...)
A ser feliz por mentira, 
melhor que eu chore com fé.