A primeira vez que soube do artista australiano Ron Mueck foi quando sua obra "Boy" foi exibida na Bienal de Veneza de 2001. A escultura representava um jovem refugiado da guerra da Bósnia, e o tema daquela edição do evento era "Plataforma da Humanidade".
Eu nunca tive pelo hiperrealismo maior admiração do que aquela que nos faz constatar a habilidade técnica do artista (como pode este quadro/escultura ser tão perfeito! Parece de verdade!). As obras, em si, nunca me sensibilizaram.
Mas o que Mueck faz com o hiperrealismo, entretanto, transita por uma outra esfera.
Ao variar as dimensões dos modelos originais, representando-os ora enormes, ora menores do que o real, o artista promove uma espécie de hipersensibilização do observador, como no caso do menino refugiado.
Uma espécie de lente nos permite perceber sentimentos de personagens que possivelmente nos passariam quase despercebidos numa fotografia ou num vídeo.
"Boy" adquire a proporção da intensidade de sua existência, da gravidade do momento que sua representação ao mesmo tempo congela e vitaliza.
E o curioso é que o mesmo acontece - esse engrandecimento de nossa percepção sobre sua presença- quando o artista reduz a escala na dupla de velhinhas, que parecem sentir-se verdadeiramente importunadas pelo olhar dos visitantes curiosos nas exposições.
Enfim, sou uma fã ardorosa do artista, comprei seu livro, persigo seus feitos. E fiquei muito triste ao visitar sua exposição no MAM, Rio de Janeiro. Irritada e mesmo traída pela profusão de selfies, de câmeras, de pessoas que diante DAQUILO, pareciam nem valorizar de verdade o que viam, fenômeno fartamente comentado na ocasião.
Achei certeira a expressão empregada em um dos artigos que li sobre esse fenômeno: "incontinência fotográfica".
Incontinência.
Como a incontinência urinária: a incapacidade de segurar a urina; ou a incontinência emocional: descomedimento no modo de agir, imoderação (Dicionário Online de Português)
Entendi a incontinência fotográfica como a automatização do gesto de fotografar, a incapacidade de conter a mão que saca o celular para bater uma foto, pois tudo tem que ser fotografado para provar que foi vivido. Vivido?
Daí que me impressionei muito quando soube que uma mãe que amamentava seu filho foi censurada por um funcionário da Pinacoteca durante visita à mesma exposição, agora em cartaz na capital paulista.
E antes que eu prossiga escrevendo, acho bacana reproduzir aqui as esculturas incríveis que o artista elaborou sobre mulheres, gestação e maternidade, que não vieram para a mostra brasileira, mas que imprimem nos olhos da gente todo o respeito e admiração do artista pela natureza e pela natureza e sensibilidade humana:
Dificuldade, descomedimento? Eu poderia dizer que estamos em tempos de uma incontinência cultural?, essa vinculação automática dos bebês às mamadeiras e aos leites artificiais, e a certeza de que, quando amamentados, isso não deve/não pode acontecer em público?
Que loucura essa "cultura" pela qual se censura os outros, pela qual se breca gestos correntes da vida em defesa daquilo que nos disseram e ainda dizem as indústrias, a propaganda e os modelos de comportamento "civilizado" que importamos sem nem sentir direito...
Daí eu fiquei pensando: a pessoa que sinalizou à mãe a necessidade de ela se recolher a outro espaço para alimentar seu bebê não viu a exposição (!). Pode ter olhado, mas não viu. Nem ele nem aqueles que o apoiaram nessa medida... porque, na minha cabeça, como ver as obras de Ron Mueck e não transcender a percepção rotineira que temos das coisas? ESSE é o efeito de suas obras, pra mim, ao menos. Um novo jeito de olhar para as pessoas, uma sensibilidade que sempre esteve lá, mas não percebemos de imediato, não costumamos acessar, não rola automaticamente...
......
Mas para cada ação, uma reação.
E São Paulo, mais uma vez, não deixou a cena passar em brancas núvens.
Coibição = mamaço.
A Matrice deu o recado, convidando as mães que amamentam para ver a exposição e lá amamentarem à vontade.
Tentando aqui, então, relacionar mamaço e Ron Mueck, o que pensei é que mamaço é uma espécie de hiperrealismo também, que lida com a escala também. Porém, diferentemente, ele não adiciona nem subtrai escala: a multiplica.
Ou seja, se uma mãe amamentando pode parecer estranho e censurável, muitas mães não o parecerão, devolvendo àquela mãe inicial a grandeza de sua atitude e dizendo a todos: vejam, é normal, é bom, e nos deixem com nosso sossego.
Além de fã de Ron Mueck, sou fã também de mamaços :o)
Coerente isso...
Cristine! Não tenho palavras aqui…
ResponderExcluirÉ ISSO! Coerência, generosidade, inteligência, comprometimento, cultura.
Sou sua fã!!!!!
Protesto e repito, ao ver a queixa sobre a pinacoteca. Trabalhei por um curto período numa Exposição e fui orientada pelas atendentes sobre a proibição de alimentos e bebidas, inclusive para bebês. Ao ver uma mãe prestes a alimentar o bebê, a atendente ficou de olho e quando questionei me explicou que se ela sacasse da bolsa uma mamadeira seria orientada a ir para a cafeteria ou sacadas, mas que se sacasse o peito poderia fazê-lo onde quisesse. E reclamo porque estou repetindo isso sempre, pois postei empolgada na época que a pinacoteca, na contramão do senso comum ignorante, proibia a mamadeira e o peito era a regra...
ResponderExcluirtexto maravilhoso como sempre. Sua fã!
ResponderExcluirFico feliz que tenham curtido, Ana e Fabíola. E um dia eu hei de conseguir presenciar um desses feitos desse grupo de mães, como entusiasta e apoiadora, é claro ahahah. Mas lembrei agora que posso carregar meu Bebé Glotón no sling :o)
ResponderExcluirRespondo agora a você que trabalhou na Pinacoteca:
ResponderExcluirTenho admiração por sua defesa à instituição. Estou plenamente consciente de que vivemos num mundo cheio de equívocos de comunicação, e de que é muito perigoso mesmo nos pautarmos só por um pedacinho do fato quando ele é, na verdade, muito mais rico e extenso. Pelo seu depoimento, entendi que há uma orientação super bacana na Pinacoteca quanto ao assunto, e você a recebeu quando trabalhou lá. Isso é super relevante. Eu moro no Rio, apenas li matérias sobre o evento da coibição à mãe que amamentava em jornais e redes sociais, além de conhecer pessoalmente e muito bem pessoas do grupo que se manifestou, a Matrice. Então, o que posso deduzir é que, de alguma forma, essa boa orientação recebida por você deu algum ruído nesse caso, tipo foi congelada em uma diretriz resumida: alimentação não pode. A partir disso, e diante de tantas outras obrigações e deveres das pessoas que trabalham na Pinacoteca, o entendimento de que a amamentação não se enquadraria nessa regra acabou se perdendo, pelo menos naquele momento.
É o que consigo imaginar. E se a Pinacoteca teve, em algum momento, essa preocupação, fico empolgada como você. E daqui eu acho que o mamaço então foi muito legal pra trazer de novo à pauta o assunto e esclarecer aos funcionários atuais sobre a conduta a ser tomada.
Tudo de bom!