É sem dúvida tranquilizador quando, ao adquirir um produto, constatamos um ou mais selos de certificação. Eles são importantes e necessários, pois atestam a boa origem de materiais, a produção responsável, a eficiência tecnológica, a segurança para o uso etc.
Se a gente pensar na indústria, desde que ela surgiu, veremos que conquistas como essa foram lentas, muito lentas. A começar pelas máquinas, que aos poucos foram sendo adaptadas para serem digna e ergonomicamente operadas por pessoas, pois muita gente morreu ou foi mutilada pela brutalidade daqueles gigantes pensados para multiplicar exponencialmente uma geração de coisas antes manufaturadas. Aqueles trabalhadores "ralavam" por muitas horas a fio e, ao final, retornavam para suas "casas" em cortiços insalubres. Os direitos dessas pessoas foram sendo alcançados à base de uma longa história para a formação e reconhecimento dos sindicatos pelos governos em árdua luta pela redução da jornada de trabalho, o descanso semanal, a regulamentação das tarefas e salário justo.
Por outro lado, muito teve que ser batalhado para defender também os consumidores daqueles produtos oriundos da produção industrial, desprovidos de controle de qualidade ou de informações sobre a procedência dos insumos ou mesmo sobre a validade para consumo.
O nosso conhecido PROCON (órgão público de proteção ao consumidor) é coisa recente. Acreditem ou não, sua fundação no Brasil ocorreu apenas em 1976, em São Paulo, alcançando outros estados em anos posteriores e acarretando o Código de Defesa do Consumidor, promulgado em 1990. Um pouco antes do PROCON, em 1973, havia sido criado por lei o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial, o INMETRO. Até então nada tínhamos. Em 1987 constituiu-se o IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - associação de consumidores, de utilidade pública federal, mantida por seus associados. Todas essas instituições -hoje muito ativas em defesa dos nosso direitos e da nossa segurança como usuários da produção industrial- são fruto de um trabalho longo resultante do clamor da sociedade civil.
Tendemos a pensar que os produtos industriais são perfeitos, estalando de novos, aceitando-os como coisas virgens que apenas começarão a existir a partir do uso que fizermos deles. Não é assim. Eles acumulam uma longa e complexa história antes de irem para as prateleiras das lojas, envolvendo inúmeras etapas, processos e situações singulares. Podem, assim, trazer erros de projeto, má escolha de materiais, exploração de trabalhadores, defeitos graves de produção, o que faz deles altamente possiveis repositórios de imperfeições e de perigos.
Há alguns anos acompanhávamos um quadro de programa dominical que submetia ao INMETRO os mais diversos produtos de uso corrente, testando várias marcas e demonstrando claramente os critérios e técnicas utilizados para tal (eu acho que esse deveria ser um conteúdo obrigatório e permanente a ser disseminado pela televisão, dado seu altissimo nível de interesse enquanto informação de utilidade pública). Mas então podemos acreditar que a totalidade dos produtos que recebem o selo de certificação desse órgão foram testados? Um por um? Não, não foram.
Em 2009, ao desenvolver minha tese de doutorado, li em matéria de jornal como acontecia na prática a certificação do INMETRO para produtos importados: ao chegarem os containers aos portos brasileiros, recolhe-se de seu interior alguns produtos para testagem. Estando tudo ok com eles, todo o lote recebe o selo. O texto dizia ainda que um secador de cabelo poderia ser integralmente entendido como produto certificado quando apenas a sua tomada o havia sido.
Incapazes? Incompetentes? Certamente não! É absolutamente impossível testar mil, dez mil, cinquenta, cem mil unidades produzidas em extensas linhas de montagem. O problema está em confiarmos tão cegamente nesses produtos. Sim, estamos expostos ao sistema e nos falta a super desconfortável missão de sermos críticos e cuidadosos perante os mais consagrados, brilhantes e glamourosos objetos.
Quando vemos na televisão e em jornais avisos de recall, significa que a indústria responsável pelo objeto daquele anúncio foi obrigada a reconhecer publicamente a responsabilidade pela falta de segurança de determinado produto. Já vimos acontecer recall de brinquedos, de produtos alimentícios como leite em pó na China, de berço no Brasil. E, acreditem, a campeã em recalls é a indústria automobilística, máquinas que transitam em velocidade colocando em risco seus ocupantes, demais meios de transposte e transeuntes. Apesar de, desde 1940, durante o governo de Getúlio Vargas, contarmos com a ABNT - Associação Brasileira de Normas Técnicas e desde 1946 com a ISO - International Organization for Standartization, a busca pela qualidade e segurança da produção industrial enfrenta um desafio de grau superlativo.
Tudo isso para abordar um fato recente envolvendo mamadeiras: a subsidiária panamenha da corporação japonesa de artigos para bebês Pigeon divulgou o anúncio a seguir afirmando que o novo modelo de mamadeira da empresa recebera a certificação internacional IBCLC. Um texto entusiasmado garantia que o produto não causaria no bebê a problemática "confusão de bicos" (provocada pelo risco de a criança não mais recuperar a expertise de sorver o peito, com a qual nasceu, depois de ter se adaptado aos movimentos necessários para beber o líquido da mamadeira, muito diferentes).
No perfil da Pigeón no Instagram a reação foi forte, felizmente! Na verdade a organização certificadora denomina-se IBCLE - International Board of Lactacion Consultant Examiners. O IBLCE não certifica produtos, mas sim profissionais para a defesa do aleitamento materno, em processos criteriosos e periodicamente submetidos a atualização. Tais profissionais obtêm o título de consultor (o C final da sigla IBCLC - International Board Certified Lactation Consultant). Ou seja, um consultor não é a instituição que o titulou; um universitário não é a universidade que cursou; um cidadão não é o país onde nasceu.
Confusa essa coisa das siglas, realmente, mas o uso que foi feito disso pode seduzir e enganar muita gente. O marketing se vale de recursos assim. A Nestlé, por exemplo, se autointitula "autoridade máxima em nutrição", usa slogans como "Nestlé faz bem", apesar de tudo o que não se encontra sobre a empresa nas primeiras páginas de uma busca no Google.
Diante do ocorrido, a Pigeon panamenha se desculpou em uma nota protocolar, dizendo que alguns consultores certificados pela instituição - portanto detentores do título IBCLC, e não a instituição IBCLE, aprovaram a mamadeira.
Antecedendo a nota, o seguinte texto:
Portanto, mesmo as certificações podem ser equivocadas ou "equivocadas".
Cada vez mais vivemos num modo em que o mínimo de trabalho que despendermos para alcançar soluções, obter informações, tomar decisões nos parece mais confortável. Dá um trabalho fazer diferente.
Mas pensemos no que disse Umberto Eco, importante pensador italiano:
Talvez seja mais sensato duvidar de tudo quanto depressa demais se nos apresente como definitivo
PS: Faço um agradecimento especial aos amigos pediatras Marcus Renato de Carvalho, que me noticiou o caso, e Roberto Issler, que trouxe esclarecimentos, acompanhou e revisou este artigo.